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Alexsandro Nogueira: A romantização da onça

 


Em “A Sombra e a Escuridão" (protagonizados por Val Kilmer e Michael Douglas, com direção de Stephen Hopkins) dois leões africanos, ao longo da construção de uma ferrovia, desenvolvem um hábito incomum: o gosto pelo sangue humano .

O comportamento é inexplicável e por isso ainda mais perturbador porque desafia a lógica da natureza. Os felinos matam não por fome, mas por um instinto, vício e prazer, algo que escapa à lógica dos animais.

Há ali uma estranha mudança de comportamento confrontando a ordem natural e fundando um mistério. E é precisamente esse deslocamento da biologia que torna o enredo do filme ainda mais inquietante.


Curiosamente, a lembrança desse longa-metragem de 1997 ressurgiu na minha cabeça depois do recente episódio no Pantanal sul-mato-grossense, onde um caseiro foi morto por uma onça às margens do rio Miranda.

As autoridades confirmaram o ataque. E ainda que especialistas reafirmem que esse tipo de evento é raro, a exceção tem o poder de desmontar a narrativa dominante.

Aquela em que a onça-pintada ocupa um lugar quase místico no imaginário coletivo: símbolo de força e beleza. Um felino enigmático que vive, supostamente amedrontado pelos seus predadores, mas em harmonia com o meio ambiente

Por muito tempo, a sociedade conviveu com essa imagem romantizada. A onça, um dos mais belos felinos brasileiro, virou personagem turística, emoldurada em fotos raras, vídeos discretos, relatos embargados de emoção.

Vê-la era privilégio. Fotografá-la, um feito. Convivia-se com a ideia da onça como se convive com um mito: distante o bastante para ser bela, próxima o bastante para ser temida.

O ataque à margem do Miranda rompe a ilusão de harmonia e nos obriga a enfrentar aquilo que o mito encobre: a natureza não é uma narrativa. É um espaço vivo, pulsante, imprevisível. A onça, quando ataca, lembra que não pertence ao papel de mascote, mas ao de predador feroz.

A imagem turística transmuda-se num drama atroz e crianças politicamente corretas descobrem estupefatas a crueldade do mundo selvagem.

No romance “Sempre Viva”, de 1981, o escritor fluminense Antônio Callado, relata a história de Antero Varjão, um ex-torturador da ditadura que persegue a onça com uma zagaia pelas matas do pantanal sul-matogrossense. Ali, a violência humana invade o espaço da fera. Agora, parece que os papéis se embaralham. A fronteira entre o natural e o humano está cada vez mais tênue. E talvez seja essa a real ameaça: o fato de não sabermos mais onde ela começa ou termina.

Não se trata de demonizar a onça. Muito menos, beatificar o bicho. Trata-se de perceber que o pacto tácito entre civilização e natureza talvez nunca tenha existido de fato.

Quando a exceção rompe a cena, o susto é menos com o felino do que com a nossa ingenuidade. O Pantanal continua ali, esplêndido e indomado, mas talvez não tão pacificado quanto gostaríamos de acreditar. Quando turistas sentem verdadeiro gozo quando fotografam ou filmam uma onça de uma certa proximidade, muitos inclusive aplaudindo a cena, é bom sabem que o animal está olhando não para se exibir e sim escolhendo quem poderá ser seu próximo jantar.

Ela não tem valores morais, não raciocina em termos éticos, tudo é puro instinto. E se a onça atacou, a pergunta incômoda é: quem cruzou a linha primeiro?

Alexsandro Nogueira, escritor, jornalista e músico