Posso viver sem pão, vendendo o almoço para comprar o jantar, mais destroçado do que bituca de cigarro em boca de bêbado, mas não consigo viver sem liberdade, sem o circo humano que todas as manhãs descortina à minha frente e me diz que tenho o direito constitucional de ser louco à minha maneira.
Claro que não preciso - e não devo, apesar de que escorrego vez em quando e sempre - escrever tudo que vem à minha cabeça, detonando aqueles que me contrariam, dando socos nos queixos dos desafetos, blasfemando contra os supostos canalhas, perseguindo os sicários das almas alheias, mas gosto de viver pensando que posso fazer tudo isso quando me der na telha.
Nesse aspecto, sou um sujeito inadaptável. Meu senso de justiça é muito maior do que o realismo do meu bolso. Por isso, tenho sempre no gatilho uma frase que me persegue desde quando assisti (comovido) ao filme "A Paixão de Cristo", de Mel Gibson: "morro na miséria, mas não vivo com medo".
Assim, com altos e baixos, cheguei até aqui. Não foi fácil. Perdi muita coisa. Ganhei outras. Mas preservei minha dignidade. Não ajoelhei perante os picaretas. Não fui submetido a humilhações que pudessem triturar meu psiquismo. Não perdi a capacidade de compreender que todos somos feitos do mesmo barro e que, no fim, lá estaremos juntos formando a massa disforme de nossa inexistência.
Por isso, antes de tomar qualquer decisão na vida, convoco uma mesa-redonda com a minha consciência, converso com amigos, troco ideias com meus amores, pondero, ouço críticas sobre minha personalidade inconsequente, reflito profundamente, rumino as gramas de minha existência, para depois - só depois - vestir o personagem apropriado e sair por aí fazendo graça e cometendo troças.
Hoje eu posso ser um copo até aqui de mágoa. Amanhã, posso estar tomado por uma fé inquebrantável na grandeza da humanidade. Depois...depois não sei, posso amar e odiar o mundo, ser chamado de Raimundo, sabendo que isso só será uma rima e nunca uma solução.
(Uma crônica não publicada de 2015)