O Che Guevara de camiseta
Uma boa amizade sobrevive a todas as intempéries do tempo. Mesmo nessa época bicuda de pouca tolerância com o jeito diverso de pensar, mantive algumas relações fraternas que sobreviveram a feérica passagem dos anos 80, 90 e 2.0.
Na época em que fiz faculdade “todos” – é um modo de dizer – éramos de esquerda. A direita inexistia. Ou melhor: ninguém tinha coragem de se autodenominar como pertencente a esse campo ideológico.
Um de meus melhores amigos era da chamada “esquerda radical”, vinculado a um micro-grupo patológico-socialista que acreditava piamente que só com armas em punho era possível derrubar a ditadura.
Como se diz, o homem espumava quando percebia qualquer “desvio pequeno burguês nos companheiros”.
No final de 1987 ele conheceu uma Austríaca aqui em Campo Grande e mudou-se para os arredores de Viena.
Passou uns dez anos na Europa e retornou, depois de uma separação mal resolvida.
Por incrível que possa parecer, manteve o mesmo fervor dos tempos de estudante. Brinquei: "eis meu espião que veio do frio". Ele não entendeu.
Andou metido com alguns Black blocs na Alemanha, depois trabalhou como assessor de imprensa de um grupo de Punk pesado, até ser um dono de um barzinho esquisito na periferia de Hallein.
Sempre mantivemos contato por e-mail, mas deixamos de discutir política porque percebemos que as divergências saiam da esfera da civilidade.
Quando ele voltou para Campo Grande, em 2014, às vezes nos encontrávamos para conversar, tomar cerveja, essas coisas. Claro, a conta sempre sobrava pra mim porque ele dizia que “adorava explorar a direita”.
Nossas conversas sempre se restringiam aos temas literários. Somos admiradores de autores americanos como Franzen, Faulkner, Melville e de poetas ingleses como Eliot, Auden e Chaucer.
Ele gosta de romance de mulherzinha, tipo Austen, e eu prefiro autores mais brutos como Bukowski ou Hemingway.
Certamente, do ponto de vista político, não consigo levá-lo a sério. Esse meu amigo nutre uma adoração fanática por Che Guevara. Tanto que ele só usa camisetas com aquela foto famosa do seu rosto místico e icônico.
Ele me disse que sua coleção ultrapassava mais de 100 camisetas, compradas em várias partes do mundo.
Por isso, caracterizei seu esquerdismo dentro de um padrão estrito de galhofa e o apelidei de meu “Che de Camiseta”.
Ele não tá nem aí com a brincadeira e segue em frente em sua adoração ao homem que ele acredita ser a encarnação viva de Jesus Cristo dos tempos modernos.
Ele me conta orgulhoso: Toda a vez que assiste a “Diários de Motocicletas”, de Walter Salles, não resiste e chora quando vê Gael García Bernal na cena em que atravessa um rio a nado, desafiando sua própria natureza.
Comentei que esse “o truque fílmico era pateticamente emocionante”, mas parece que ele não ouviu.
Li e dei-lhe de presente duas biografias relevantes de Che: a de Jon Lee Anderson e a de Jorge Castaneda. Ambas as obras revelam o lado negro do argentino que morreu na Bolívia tentando salvar o mundo do capitalismo selvagem.
Vejam como são as coisas: na parte das obras em que constatei a história de um sujeito maluco e pretensioso, que mandou matar sem dó nem piedade seus inimigos ideológicos, meu amigo enxergou um cara redentorista, que estava livrando a humanidade de canalhas burgueses e de gente estúpida da classe média cubana.
Dei-me por vencido. Mantenho a amizade porque meu “Che de Camiseta” tem alma pura e tolera minhas ironias.
Nos últimos tempos, acho que ele anda meio pirado com os acontecimentos do Brasil. Dei meu conselho: troca de camiseta, compre aquelas com a cara de Marilyn Monroe reproduzida pelo Andy Warhol.
Ele não entendeu a piada.