Morreu Ernst Nolte (1923-2016), um dos mais polêmicos historiadores da Alemanha nazista. E eu, por mero acaso bibliográfico, soube da notícia quando lia, maravilhado, "Fascisme et Communism", uma troca de cartas entre o próprio Nolte e outro gigante da história: o saudoso François Furet (1927-1997).
Eis o problema (e a polêmica) que Nolte nos coloca: será que o fascismo, e em especial o nazismo, foi uma resposta à ameaça comunista? Mais ainda (ou pior ainda): o antissemitismo genocida que marcou o Terceiro Reich pode ser entendido pela desproporcional participação de judeus no socialismo e no bolchevismo?
Perguntas dessas, na Alemanha do pós-Segunda Guerra, fizeram estremecer vários espíritos. Sim, Lênin é anterior a Mussolini; e Mussolini é anterior a Hitler. De igual forma, o Gulag é anterior a Auschwitz. Mas será que fatos meramente cronológicos podem ser também causais?
Sem surpresa, Ernst Nolte era a "bête noir" da historiografia alemã. Se o nazismo foi um "produto" do comunismo, isso não seria uma desculpa para o próprio nazismo?
E o que dizer do antissemitismo de Hitler? Será que ele pode ser justificado pela composição judaica da primeira geração bolchevique?
Nolte sempre se defendeu das interpretações maldosas das suas teorias – e repete o exercício no diálogo com Furet. Nas suas palavras, uma explicação "reativa" do nazismo não desculpa os crimes cometidos pelo regime.
O objetivo de Nolte é outro: procurar "entender" o nazismo (no sentido epistemológico do termo) sem o encerrar nos clichês habituais de "mal absoluto" ou infâmia de um "povo criminoso".
Eu "entendo" as perguntas de Nolte. E "entendo" as reações que elas provocaram. Hoje, casar comunismo e nazismo é moeda corrente para qualquer intelecto civilizado.
Mas as coisas não eram assim na segunda metade do século 20, quando uma longa legião de "idiotas úteis" festejavam sobre o cadáver de Hitler ao mesmo tempo que prestavam vassalagem a um psicopata igual: Stálin.
Mas no debate entre Nolte e Furet, estou com o segundo. O nazismo não é uma mera reação à Revolução Russa de 1917. François Furet prefere olhar para o comunismo e para o fascismo como gêmeos ideológicos contra um mesmo inimigo: a democracia liberal (ou "burguesa", para usar a linguagem das seitas) que emerge na Europa do século 19.
O ódio ao parlamentarismo é igual. O ódio ao capitalismo é igual. A defesa de um regime de partido único é igual. A exortação da violência como meio legítimo de construir o "homem novo" é igual.
Falar de Raça, ou Proletariado, é questão de pormenor quando o fim é semelhante: a destruição da democracia pluralista pela imposição do Estado totalitário. Escusado será dizer que os resultados não poderiam ter sido outros: a mesma desumanidade e a mesma montanha de cadáveres.
De igual forma, estou com François Furet sobre o antissemitismo nazista. Hitler não precisava de bolcheviques judeus para destilar o seu ódio. Capitalistas judeus também serviam (ó supremo paradoxo!). E, além disso, será preciso lembrar que o fascismo de Mussolini não era, de início, uma ideologia estruturalmente antissemita?
É possível estudar o comunismo e o fascismo "racionalmente", como pretende Nolte, desde que isso não signifique o apagamento da mesma fonte iliberal em que ambos beberam abundantemente.
Por último, existe uma dimensão dos fenômenos totalitários que está ausente em Nolte mas também em Furet.
É a dimensão pseudo-religiosa do comunismo e do fascismo. Se Deus estava morto, como proclamou um filósofo célebre, estariam as massas finalmente libertas de qualquer "religião"?
Raymond Aron (1905-1983), um compatriota de Furet, deu a resposta em "O Ópio dos Intelectuais" (uma obra-prima que a Três Estrelas editou recentemente): os movimentos totalitários, a começar pelo comunismo, mimetizaram a religião tradicional nos seus ritos e narrativas. Com uma diferença: prometeram aos "humilhados e ofendidos" uma recompensa terrena, e não celestial.
Os anos passam, as leituras acumulam-se. Mas a interpretação de Aron sobre as "religiões seculares" parece-me cada vez a explicação definitiva para tantos "fiéis", "sacerdotes" e executados "heréticos".
*Escritor português, é doutor em ciência política.Publicou esse artigo originalmente na edição da Folha de S.Paulo desta terça-feira, 30.