Se Deus existe, por que sofremos? Essa é a pergunta incômoda que um grande amigo ateu me faz desde a década de 1990.
O questionamento é legitimo e transforma Deus em réu, convidando-nos a julgar sua existência e sua bondade a partir da dor que testemunhamos ou sentimos.
Não se trata de uma provocação recente. A teologia e a filosofia há séculos debatem essa inquietação sob o nome pomposo de Teodiceia – termo grego que reúne “Deus” (theós) e “justiça” (díkē).
No fundo, a coisa é confusa: se Deus é bom, por que permite o mal? Se Ele é oTodo-poderoso, por que não o impede? E se não o impede, é porque não pode ou não quer?
Se Deus não pode repelir a maldade, não é onipotente. Se pode, mas não quer, é cruel. Se quer e pode, por que não o faz?
Essas questões não cessam, especialmente quando a dor é desproporcional, injusta, arbitrária. O sofrimento da criança com câncer, do pobre com a fome, da vítima com a injustiça abjeta, enfim, todo o sofrimento que não ensina, não transforma, apenas fere e destrói, coloca dúvida sobre Deus e seu poder sobre os homens.
Sob a influência do Iluminismo alemão, a modernidade, com sua confiança na razão e na ciência, retirou Deus do processo e colocou o homem no centro de tudo.
Foi um gesto de coragem e vaidade. Mas o preço cobrado veio alto: o Holocausto, a carnificina humana comandada por Hitler e seu exército, que assassinavam Judeus enquanto ouviam Wagner e liam Flaubert. E o extermínio de seis milhões de Hebreus nos deu uma resposta complexa. O mal não está apenas nas forças da natureza, mas no próprio coração humano.
E há ainda o sofrimento cotidiano, quase invisível, mas igualmente feroz. Uma criança morta por um motorista bêbado. Um jovem saudável que desaba com um diagnóstico incurável. Famílias desfeitas, a solidão dos idosos, a brutalidade da vida.
A pandemia recente, que ceifou milhões, devolveu à humanidade a certeza de que não controlamos nada. O universo é indiferente. A gravidade não se comove com uma criança que cai de uma janela. A chuva não adia o casamento. O cosmos não conspira a nosso favor – nem contra. Apenas é. E isso já basta para nos esmagar.
Há um sofrimento, porém, que suportamos com alguma dignidade – o sofrimento que tem sentido. A mulher que dá à luz entre dores sabe que dela virá vida. O operário que sua e se cansa sabe que ao fim do mês terá o pão. Mas e o sofrimento gratuito? O luto que chega cedo demais? A perda sem aviso? O acidente sem culpa?
É contra esse sofrimento sem propósito que nossa alma grita – e contra o silêncio de Deus diante dele. A pergunta não é apenas filosófica. É um clamor. Um grito que pede explicação, consolo, presença.
Mesmo entre os que creem, Deus permanece um mistério. Blaze Pascal já nos lembrava: há luz suficiente no mundo para quem deseja crer, mas também escuridão bastante para quem quer negar.
Deus não é evidente. Crer é um salto, e nem sempre o chão aparece sob os pés. Crer não é compreender, é confiar mesmo quando tudo se mostra contrário.
Talvez a pergunta “Se Deus existe, por que sofremos grandes atrocidades?” não tenha resposta definitiva. E a grandeza esteja justamente aí: em seguir perguntando, mesmo sem garantias. Em continuar vivendo, mesmo na dor. Em continuar amando, mesmo em um mundo onde o mal é uma realidade constante.
Como disse Dostoiévski: “É possível viver sem fé, mas não sem esperança.” E enquanto houver esperança, talvez Deus ainda esteja por perto – não como juiz, mas como testemunha silenciosa da nossa tragédia.