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Alexsandro Nogueira: Coxim - histórias que o tempo quase apagou

 

 

Duas noites antes de falecer, o escritor e pecuarista João Ferreira Neto me concedeu alguns minutos de conversa. Foi um privilégio, embora, àquela altura, eu não soubesse disso. Falamos sobre história e sobre seu livro "Raízes de Coxim". A voz era pausada, mas a memória intacta. 

Talvez ele soubesse que o tempo lhe escorria pelas mãos e quisesse deixar, em cada palavra, um pouco do passado que ele tanto zelou em preservar por meio das conversas com os amigos e da literatura.

Aviso aos críticos que "Raízes de Coxim" não é um primor literário, mas esse detalhe é irrelevante. Porque o que João Neto entrega não é literatura requintada, que aspira a obra de arte, mas um serviço à memória de um lugar que poucos conhecem de fato. 

Há algo minucioso no livro: uma pesquisa paciente da cidade, revelando camadas que o tempo tratou de esquecer.

Entre os muitos achados, dois me impressionam especialmente. O primeiro: Coxim, entre 1961 e 1964, foi ponto de origem de voos comerciais da VASP para São Paulo. Sim, senhores, voos regulares, ligando a cidade da piracema ao coração econômico do País. 

Hoje, quando viajar de Coxim a Campo Grande já parece um fardo rodoviário, a ideia de uma linha aérea comercial naquela época soa quase como ficção. Mas aconteceu. Está documentado, descrito, registrado em foto.

O segundo achado tem gosto de frustração: a estrada de ferro que deveria ligar Uberaba, em Minas Gerais, a Coxim. Não deu.

O projeto saiu do papel, chegou a dar os primeiros passos, mas sucumbiu no início do século XX, engolido por interesses políticos, limitações financeiras e/ou talvez pela simples falta de sorte. 

Quantas cidades não tiveram seu destino alterado por uma ferrovia que nunca veio? Quantos lugares não estariam em outra posição no tabuleiro econômico se os trilhos tivessem avançado mais alguns quilômetros?

O que "Raízes de Coxim" faz, em última análise, é devolver à cidade uma parte de sua grandeza perdida. A Coxim que João Neto resgata não é apenas um ponto no mapa, mas um organismo vivo, pulsante, com sonhos e frustrações, com momentos de brilho e de esquecimento. 

Enfim, é um livro que desafia a ideia de que o passado deve ser esquecido, sem utilidade para o presente.

É verdade que a história de Coxim, como a de tantas cidades do interior, é feita de promessas interrompidas, de futuros que não chegaram, de esperança frustrada. Mas há uma beleza nisso, um lirismo próprio das narrativas que não se completam. 

João Neto sabia disso e escreveu para que a memória da cidade não se perdesse por completo.

Um detalhe: dois dias antes de sua morte, enquanto falávamos rapidamente, ele não parecia um homem prestes a partir. Parecia alguém que ainda queria contar mais uma história. Talvez, naquele instante, soubesse que já havia contado o suficiente.




Alexandro Nogueira é jornalista, escritor e músico