Somos seres feitos de luz e sombra, habitando o espaço
estreito entre o riso e o pranto, entre o amor e a perda
Há perguntas que atravessam os séculos sem jamais perder a força.
Questionamentos existenciais incômodos, que desafiam não só a lógica, mas também o próprio sentido da existência. Entre elas, talvez a mais antiga e desconfortável seja: por que coisas ruins acontecem a pessoas boas?
O escritor Harold Kushner, rabino e pensador sensível, enfrentou essa questão em “Quando Coisas Ruins Acontecem a Pessoas Boas”, escrito após a perda devastadora de seu filho para uma doença rara.
Para quem tem preconceito com temas bíblicos, aviso: não é um tratado teológico, nem um compêndio filosófico. É, antes de tudo, um livro escrito com o coração exposto, um pai em luto tentando entender um mundo onde a dor parece, muitas vezes, indiferente à justiça.
Kushner não entrega respostas fáceis — talvez porque não existam. Ele afasta a ideia de um Deus onipotente que controla cada detalhe da existência e permite o sofrimento por capricho ou punição.
Em vez disso, propõe uma visão mais frágil e, paradoxalmente, mais humana da divindade: um Deus que acompanha nossa dor, mas não a impede. É uma tese desconfortável para muitos, mas que tem um mérito singular — ela devolve à humanidade a responsabilidade por lidar com o sofrimento, por encontrar sentido na tragédia.
E aí está o ponto essencial: a dor não é um erro do sistema. Ela não é uma exceção, mas uma constante da experiência humana. Sofrer faz parte do pacote.
Somos seres feitos de luz e sombra, habitando o espaço estreito entre o riso e o pranto, entre o amor e a perda. Queremos acreditar que a bondade será sempre recompensada, que existe uma lógica invisível que equilibra a balança da vida. Mas a existência é mais caótica, mais imprevisível — e, talvez, mais bela por isso.
O sofrimento nos fere, mas também nos revela. Há uma frase surrada — “é no fogo que se forja o aço” — que, apesar do clichê, carrega algo de verdadeiro.
A dor, por mais brutal que seja, tem o estranho poder de nos despir das ilusões. Nos momentos mais escuros, é possível enxergar quem realmente somos. O que resta de nós quando tudo o que amávamos desmorona? Em muitos casos, resta o essencial — a capacidade de amar mesmo no meio da tragédia, de oferecer a mão ao outro mesmo quando mal conseguimos nos manter em pé.
Mas isso não significa glorificar o sofrimento ou tratá-lo como uma dádiva camuflada. Kushner não propõe isso. A dor é dor, e ponto final. N
Não há poesia na perda de um filho. O que existe é a possibilidade — e só isso — de que, ao atravessarmos o deserto, saiamos dele um pouco menos ingênuos, um pouco mais humanos. Sofrer não nos torna melhores por si só, mas nos coloca diante de escolhas que podem nos moldar.
Em última análise, talvez a pergunta não seja “por que coisas ruins acontecem a pessoas boas?”, mas sim “o que faremos quando o inevitável nos atingir?”. Porque atingirá. E nesse momento, somos confrontados com nossa própria sombra — o desespero, a raiva, a sensação de injustiça — e com nossa luz — a compaixão, a resiliência, a capacidade de seguir adiante.
A dualidade faz parte do que somos. A dor apenas escancara esse fato.
Kushner nos convida, portanto, a abandonar a busca por respostas fáceis e abraçar a complexidade da vida. Sim, o mundo é injusto.
Sim, a dor é inevitável. Mas, apesar disso — ou talvez por causa disso — ainda somos capazes de encontrar beleza, amor e sentido. Somos feitos de sombra e luz, e é nesse contraste que a nossa humanidade pulsa mais forte.