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Alexsandro Nogueira: A Revolução do Pronome

 

 

A esquerda contemporânea, especialmente no Brasil, é uma comédia pastelão. 

O que antes era uma força política empenhada em mobilizar operários, defender melhores condições de trabalho e promover a justiça social, hoje mais parece um clube de discussões acadêmicas sobre pronomes e causas identitárias.

 Karl Marx certamente não imaginaria que sua “luta de classes” acabaria substituída por batalhas gramaticais em seminários estudantis.

Você, leitor inteligente, imagine a cena: a operadora de telemarketing que acorda cedo, pega o transporte público lotado e, com sorte, consegue almoçar entre uma chamada e outra no call center. Sua maior preocupação? Óbvio: pagar os boletos no final do mês. 

Agora, imagine essa mesma pessoa sendo abordada com a seguinte questão: “Qual pronome te representa melhor?”. Evidentemente, ela não só acharia a pergunta irrelevante como talvez caísse na gargalhada. 

Para ela, como para tantos outros trabalhadores, o que importa é o básico: emprego, renda e dignidade pessoal. Tudo o que a esquerda um dia defendeu, mas que hoje parece ter sido abandonado.

O problema não está apenas no conteúdo das discussões, mas também no palco onde elas acontecem. Nas universidades – redutos da nova militância progressista –, debates sobre mobilidade social ou condições de trabalho foram substituídos por obsessões identitárias. 

O escritor francês Michel Houellebecq, com sua acidez habitual, chama esse fenômeno de uma “indústria do ressentimento”. O resultado? A esquerda se distancia cada vez mais do mundo real e dos problemas concretos para habitar um universo de fantasia.

E o que dizer das redações de jornais e veículos de imprensa? Nesse ambiente, a esquerda não só abraçou as novas pautas como tornou-se feroz na imposição delas. Discordar, mesmo que parcialmente, dessa tchurma é quase um crime. 

A militância identitária transformou o debate público em trincheira, onde qualquer divergência é imediatamente rotulada como preconceito ou ignorância. Até mesmo o emblemático George Orwell em “A Revolução dos Bichos”, já falava que a construção de novos dogmas tão opressivos quanto os antigos seria apenas questão de tempo.

Esse tempo chegou.

O mais irônico é que, ao concentrar suas forças nesses debates abstratos e malucos, a esquerda abandonou os próprios trabalhadores – o grupo social que lhe deu origem. 

O operário que Marx via como o motor da revolução hoje é um espectador distante, alheio a discussões que não mudam em nada sua realidade. 

O historiador inglês Eric Hobsbawm, atento às mudanças do comportamento humano, alertava que os movimentos políticos morrem quando perdem a conexão com as massas. A esquerda atual parece determinada a confirmar essa previsão. Elas viajaram para Marte e esqueceram de subir no foguete.

Há quem diga que o abandono da “foice e do martelo” em troca do “pronome identitário” é apenas uma fase obscura do socialismo brasileiro. Talvez. Mas a pergunta que fica é: será que essa esquerda está disposta a voltar ao mundo real? 

Ou prefere continuar discursando para auditórios vazios, entre um café orgânico e uma taça de vinho chileno?


Alexsandro Nogueira é jornalista, músico e escritor.