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O Homem Só

 



Dante Filho



Nada mais apropriado do que ler, neste momento, a “História da Solidão e dos Solitários”, de Georges Minois (editora Unesp, 503 páginas), principalmente na travessia de uma pandemia cujo grande apelo é manter-se isolado, longe dos contatos mundanos, temendo que o convívio social estreito possa aumentar o contágio da doença e, em muitos casos, levar à morte. 

O livro deste historiador das mentalidades, autor de obras como a “História da Velhice no Ocidente”, “História do Ateísmo”, “História do Futuro” e tantas outras obras com a mesma potência analítica, revela que o debate em torno de um assunto meramente curioso para muitos – a solidão e os solitários – está em voga na sociedade moderna há mais de dois mil anos. 

Minois aprofunda esse tema percorrendo caminhos que vêm desde a antiguidade clássica até a era do hiperconsumo, o que pode ser um bom estímulo para  estudiosos de todas as áreas, das mais diversas tendências. 

Aristóteles, por exemplo, definiu o homem como um animal social, incapaz de viver isolado, enquanto outros filósofos da época e posteriores a ele consideravam ser necessário manter-se em retiro para dar provação e consistência à sabedoria. 

Há casos e casos. Diógenes era considerado maluco, vivendo nas montanhas, comendo folhas e ervas. Aristóxenes era aquele que ria sozinho e, quando perguntavam o porquê,  respondia  que o motivo “era exatamente por estar sozinho”. Demócrito era outro que pregava em praça pública o retorno dos homens a si mesmos, sem perceber o paradoxo que o envolvia. 

E assim vai...

Os primeiros sinais de eremitismo e cenobitismo apareceram nas franjas do mar mediterrâneo, na antiguidade clássica, criando uma mística em torno dos solitários e de seus poderes mágicos de cura e profecia, desenhando as inúmeras facetas da civilização em seus primórdios. Antes disso, é provável que optar pela solidão era o mesmo que decidir morrer nas garras de feras, de doença e de fome.

Mas foi Jesus que consagrou a grande onda rumo ao deserto, à solidão ascética, dando status ao “homem só”, conferindo a esse personagem uma grandeza jamais vista, influenciando gerações de anacoretas, padres revoltados, misantropos, enfim, estabelecendo um corte social que, de certa maneira, derrubava um consenso social de que o solitário era uma pessoa perigosa. 

Claro que a opção de evadir-se para qualquer canto do mundo e fugir de outras pessoas para viver em sofrimento denota transtornos mentais na maioria dos casos, mas em outros dava embasamento a fundamentos filosóficos, convicções pessoais, posturas místicas, o que abrandava a visão negativa do solitário convicto. 

A grande pegada de Minois é que ele aprofunda o tema e o desdobra nas suas mais intensas variações e complexidades, garantindo aos leitores um alargamento de visão sobre o fenômeno, principalmente quando personalidades públicas utilizam do estratagema da solidão para ganhar fama, dinheiro, prestígio. 

A “História da Solidão...” percorre assim vários séculos, compilando obras, textos,  referências bíblicas e estudos aprofundados deste aspecto da natureza humana, tudo para mostrar que a vida social é a regra, mesmo compreendendo que do ponto vista biológico o homem nasce, vive e morre só. 

“A vida é luta pela sobrevivência e pela perpetuação da espécie, e nos processos de seleção natural o outro é ao mesmo tempo o concorrente e o parceiro sexual, mas a natureza não previu nenhuma estrutura cerebral para a fusão das consciências”, explica Minois, acrescentando que gregarismo depende da condição solitária e vice-versa. 

No decorrer da história o embate entre vida solitária e mundanismo deixa claro que a necessidade da solidão formatou a consciência humana e o processo civilizatório. 

É certo que sempre existiram os solitários profissionais, indivíduos que acreditam que esta é uma pose que atrai fiéis, admiradores e fanáticos, mas também é verdade que o ato de criar, imaginar, dialogar consigo mesmo, além de estabelecer critérios morais de sobrevivência, trata-se sempre de mergulhar no próprio oceano psíquico, à qual é inalcançável pela multidão próxima ou distante. 

O historiador francês constrói a estrada de sua tese surpreendente, com texto elegante e didático, para demonstrar que o isolamento social não tem nada a ver com a solidão strictu sensu, pois são dimensões opostas da mesma realidade. 

O homem pode se sentir sozinho no meio de grandes multidões, bem como se sentir integrado estudando em uma biblioteca: o fundamental é como ele constrói suas relações com o chamado mundanismo e quais são suas opções categóricas para se aproximar dele ou de manter distância. 

Assim, o livro destaca os fundamentos filosóficos que a história ocidental percorre desde os gregos antigos, passando pelos pensadores da idade média, da Renascença e dos tempos modernos, unindo todas as correntes e pontos de vista na estrutura do “colapso ontológico” que vivemos. 

Certamente, sua crítica aos mistificadores da solidão é contundente à medida que demonstra que é coisa bem antiga vender a imagem de “padre do deserto” para explorar a crença dos incautos. 

Claro que, nesse meio, há gente sincera e bem-intencionada, que fez do recolhimento uma forma de viver. Mas isso sempre foi para os fortes e corajosos. 

Neste aspecto, é preciso reconhecer que a solidão transformou-se num produto de consumo que se materializa na onda das terapias alternativas, livros de auto-ajuda,  ou até mesmo do turismo de retiros controlados que pregam o afastamento e o celibato provisório como lenitivo para agruras cotidianas. 

Uma frase do escritor J.M.G. Le Clézio ganha destaque no livro de Minois: “O homem, privado de unidade, desequilibrado, despossuído de si mesmo, se encontra tal como no começo: tomado por terrores, marcado pela angústia, pressentindo os perigos e os abismos que não pode compreender”.

Ou seja: atravessamos séculos e séculos para chegar ao mesmo lugar. 

A leitura de a “História da Solidão e dos Solitários” é uma empreitada de fôlego, que surpreende e emociona (até) porque dá sentido a uma aventura que segue sem que haja conclusão final, visto que a construção do futuro depende da argamassa do passado, cujos temas que encantam e afligem a alma humana não se alteram na linha do tempo.


Diante da obra, a conclusão não poderia ser outra: o “homem só” ou é um mentiroso,  ou um canalha ou um santo.