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Abílio Leite de Barros: Reflexões sobre a poesia do ponto de vista da razão


Este ensaio integra a parte final do livro "Poesias", de Abílio de Barros, a ser lançado nos próximos dias. No texto, o autor propõe uma reflexão sobre o processo de elaboração poética, na qual funde-se, de um lado, aspectos de caráter puramente sensíveis, e, de outro, essencialmente racionais. Enfim, conclui Abílio: o poema é um ato de maluquice.

"Do ponto de vista da razão a poesia é um distúrbio de caráter lírico-afetivo, vizinho da loucura. Mas, a poesia não é conclusa apenas com a criação, ela precisa da conjunção do leitor que se une na percepção da beleza, ou seja, na loucura. Assim, o poema que não comunica nenhuma beleza ao leitor não é poesia, ainda que rimado e metrificado. Isso nos leva ao caminho difícil e pedregoso da definição do ato poético que só pode ser feito em comparação com a prosa, buscando a sua diferença específica, ou seja, a identificação do citado distúrbio.

A razão nos auxiliará nessa tarefa. A percepção racional tem por objetivo a definição, isto é, a busca da verdade seja ela concreta ou abstrata. Essa percepção, ou definição, é uma ideia ou um conceito que deve conter as características próprias do objeto e em particular as suas diferenças específicas.

A percepção estética ou poética, ao contrário, não é um conceito ou uma definição, é uma emoção e não busca a verdade, mas sim, afetivamente, a percepção da beleza. Isso, do ponto de vista da razão não é nada – e pode ser loucura.

Do poeta Manoel de Barros, discordando das minhas colocações, ouvi a afirmação de que a parte doentia é a razão, pois ela não percebe que a verdade é a beleza. Isso é poesia, ou seja, loucura.

Exemplos: vamos buscá-los em bons poetas a começar pelo mestre parnasiano Olavo Bilac em seu mais célebre soneto: 


“Ora (direis) ouvir estrelas”! Certo
Perdeste o senso! “E eu vos direi, no entanto”, 
Que para ouvi-las muita vez desperto
“E abro as janelas, pálido de espanto...”.

Onde está a poesia nesses versos? É muito claro que está em “ouvir estrelas”, o que faz o poeta, nas noites, abrir as janelas, “pálido de espanto...” Ora, do ponto de vista da razão, acordar à noite para falar com estrelas é loucura. Mas é poesia.

Em delírio semelhante diz-nos o grande Fernando Pessoa: 


“Ó mar salgado, quanto do teu sal. 
São lágrimas de Portugal!” 

Onde está a poesia desses versos? Está, por certo, na suprema insensatez de atribuir a salinidade do oceano Atlântico às lágrimas portuguesas. E o poeta fala como se dialogasse com o mar. Isso é poesia, mas é loucura.

De outro poeta, o espanhol Garcia Lorca:


De Cadiz a Gibraltar ai que buen caminito
El mar conoce mis passos por los suspiros.”

No caso, a poesia está na capacidade do mar em ouvir os suspiros do poeta. Quem não se emociona com esses versos tão simples e tão loucos?

Escolhi esses três poetas pela unidade temática dos versos, isto é, a comunicação com o inanimado – suprema loucura. Bilac, conversando com estrelas. Pessoa e Lorca dialogando com o mar – suprema poesia.

Propomos, para reflexão, um exercício comparativo entre uma prosaica definição lógico-racional e uma descrição poética. Tomemos como objeto a imagem ao vivo de uma mulher que deve ter sido o objeto mais definido em literatura:

- racionalmente ela poderá ser descrita como uma senhora de 30 anos, 1.70 de altura, 65 quilos, cor branca, olhos azuis, loura, bonita (o último qualificativo sairia sem convicção, pois é subjetivo e, portanto, de duvidosa verdade);

- o poeta, ao contrário, diria da mulher que ela é uma flor, um lírio, seus olhos falam de amor, seus lábios exalam luxúria, ela não existe – é uma invenção, uma deusa.

As diferenças entre as duas formas são flagrantes: a descrição racional é uma submissão total ao objeto. A poética é criação, invenção, fantasia e sua linguagem é ilógica e sempre em sentido figurado de metáforas. A percepção racional alimenta o entendimento, o conhecimento. A percepção poética alimenta a sensibilidade. Por aí, na natureza da percepção, podemos ter identificada a diferença específica, fundamental, entre poesia e prosa. 

O poeta é um malabarista de palavras, joga com elas como uma criança com seus brinquedos e nesse jogo o sentido real do termo perde toda importância em favor da fantasia. O sonho é mais importante que a realidade, a descrição conceitual é menos importante que o ilogismo metafórico. 

Daí resulta a dificuldade de se escrever poesia e, maior ainda, a dificuldade de entender poesia, principalmente quando a lemos com as categorias da razão, buscando o sentido lógico das palavras. Dizem os poetas que poesia não é para entender, mas sentir. Nessa linha conceitual a poesia pura poderia ser uma sucessão de palavras, sem sentido lógico, que apenas sugerem ou despertam a sensibilidade estética.

Exemplos de poemas de escasso sentido lógico:

De Cecília Meireles:


“Toca essa música de seda frouxa e trêmula
Que apenas embala a noite e balança
as estrelas noutro mar” 

(do ponto de vista da razão, a música de seda frouxa e trêmula que balança estrelas no mar é algo absolutamente indefinível)

De Manoel de Barros:                
"Sei que a voz das águas tem sotaque azul
Sei botar cílio nos silêncios
Para encontrar o azul eu uso pássaros
Só não desejo cair em sensatez”

(águas com sotaque, cílios nos silêncios e, o uso de pássaros para encontrar o azul, só faz sentido pelo último verso, onde o poeta manifesta o desejo de não cair em sensatez)               

A linguagem poética não é, entretanto, apenas a loucura do ilogismo metafórico, deve ter também ritmo e forma. A forma tradicional era dada pela métrica e rima, que todos conhecemos. Na história da literatura encontramos, ora a dominância do conteúdo, ora a maior preocupação com a forma. Mas, sempre, a poesia em si, com as suas fantasias e loucuras fazem parte do conteúdo, que o faz mais importante que a forma.

Na literatura greco-romana a preocupação com a forma era menor, os versos não tinham rima. Esta passou a ser usual e obrigatória a partir do século XIII, quando a poesia passou a ser cantada com os jograis, trovadores e menestréis. Ainda hoje quando um poeta faz versos para serem musicados, a rima faz-se indispensável. Ela marca a musicalidade. Na literatura clássica e romântica, particularmente a poesia épica ou laudatória, foi sempre contida em rigorosas exigências formais. 

Nos Lusíadas, por exemplo, Camões parece-nos em verdadeiro contorcionismo para não fugir às regras. Daí que a sua poesia lírica, mais espontânea, nos parece hoje superior ao canto épico que tanta fama lhe deu na história da literatura.

O formalismo clássico teve a sua fase áurea, entre nós, no período parnasiano onde a métrica e a rima, em alguns momentos, pareciam ser mais importantes que a poesia em si. Surgiram então, ao lado dos grandes, muitos poetas menores bem treinados no ofício, mas que de fato faziam apenas prosa metrificada e rimada. Faltavam-lhes a fantasia, o sonho, a loucura, a poesia.

Trago o exemplo de prosa metrificada e rimada tirado do mais célebre soneto de Raimundo Correia – “As Pombas”.


“Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia, sanguínea e fresca a madrugada. ”

Onde está a poesia nesses versos? Talvez apenas na métrica e rimas perfeitas.

O Movimento Modernista de 1922, em São Paulo, rompeu, no Brasil, com o formalismo parnasiano, buscando a poesia pura, liberada da métrica e rima que seriam cerceadoras da criação. Não se tratava de um movimento brasileiro mas sim reflexos de ideias surgidas na Europa, particularmente na Itália com Marinetti e na França com alguns poetas da vanguarda. O genial Rimbaud em 1872 escreveu um livro de poemas em prosa (Une Saison en Enfer) que haveria de marcar o novo caminho.

Pode parecer mais fácil fazer poesia sem o cerceamento da métrica e rima mas, do ponto de vista da razão ela se torna mais difícil, pois a forma é um visível marcador e, sem ele a poesia só se definirá pela linguagem, fantasia e a desejada loucura. Hoje podemos dizer que há boa e má poesia com rima e métrica e boa e má poesia em versos livres. Estes, apesar da liberdade, têm sempre um ritmo próprio que o poeta deve imprimir.

Outra dificuldade para definição racional de poesia é que o termo é equívoco, isto é, tem mais de um sentido. Assim, por exemplo, podemos ouvir falar de um romance cheio de poesia ou das esculturas poéticas de Degas, ou da poesia suprema dos noturnos de Chopin. Até paisagens há que são poéticas e, com maior razão, a beleza feminina poderá ser dita de inebriante poesia. 

É claro que se trata de uma conceituação por analogia; isto é, a percepção da beleza, em geral, sempre aflora à consciência carregada do lirismo próprio da emoção poética. Mas, do ponto de vista da razão, isso não é poesia, é simples analogia.

A respeito da emoção poética dissemos que ela é um distúrbio lírico-afetivo, isto é, uma doença. Precisamos dar mais explicações, principalmente, porque é uma doença da qual ninguém busca curar-se. Ao contrário, todos a desejam e a cultuam – o que é bom. Mas, como nos colocamos a serviço da razão, devemos tentar algum aprofundamento. Tratando-se de uma doença da alma achamos de bom senso consultar o Dr. Freud.

O pai da psicanálise, em várias partes de sua obra, fala no fenômeno estético, definindo-o como uma sublimação ou catarse, o que nem sempre é aceito. Mas, em relação à linguagem poética, ele está cheio de razão quando estabelece um relacionamento íntimo entre a fantasia poética e o espírito lúdico infantil. 

Em um ensaio de 1908 intitulado “O Poeta e a Fantasia”, ele aprofunda essa percepção. Diz-nos que a criança que fantasia acredita na realidade do brinquedo, assim como o poeta. Por exemplo, um tronco de madeira no fundo do quintal pode ser uma bruxa, se assim a criança o vê, o que justifica temê-la e falar com ela da mesma forma que poetas ouvem estrelas e dialogam com o mar.

Outro fenômeno que pode nos mostrar o íntimo relacionamento da poesia com o pensamento fantasioso infantil é o desespero poético da adolescência. Ninguém que conheceu a literatura na adolescência escapou do cometimento de algum poema. A razão é simples: o adolescente ainda está muito próximo do enorme depósito inconsciente da fantasia infantil, muito próximo, portanto, da poesia. Ao amadurecer, pouco a pouco, vamos nos entregando à algoz e fria tirania da razão. Nisso precisamos cuidados, pois alguém já disse que, se matarmos a criança que existe em nós, mataremos a poesia. E a poesia é uma necessidade vital.

Voltemos ao doutor. Hoje se costuma separar o método psicanalítico, tido como científico, da doutrina de Freud, sujeita a críticas. Pelo método psicanalítico de pesquisa e tratamento, tem-se como exaustivamente provado a existência do inconsciente e sua influência em nossa vida. Ele é o depósito de tudo que vemos, pensamos, vivemos, sofremos e amamos. 

A inteligência, através da memória, separa ou seleciona uma parte para suporte de nossas necessidades intelectuais, o resto torna-se o lixo inconsciente. A matéria desse lixo é de natureza sensorial, intelectual, mas também, com maior força, ela é de natureza emocional, afetiva. Este, o inconsciente emocional, tem uma dinâmica pela qual tende a aflorar à consciência, muitas vezes, perturbando o nosso equilíbrio afetivo. 

Daí a formação de uma vigilância impeditiva criada por mecanismos, também inconscientes, de censura e repressão. Emoções traumáticas e conflitos não resolvidos costumam romper a repressão pelo seu conteúdo afetivo, causando angústias e depressões incômodas.

Junto a este turbilhão emocional encontra-se o grande repositório infantil de fantasias e sonhos, alimento da poesia. Alguns de nós, bem dotados e mais sensíveis – poetas e artistas – conseguem transitar por esse mundo mágico. Trânsito sem controle e ocasional, apenas um sentimento estranho que os poetas chamam inspiração.

 Esse sentimento tem semelhanças com tristezas ou alegrias inesperadas, sem causa aparente que, às vezes, chegam ao nosso psiquismo. Seriam manifestações do inconsciente que, por associação de ideias e imagens, afloram à nossa consciência afetiva. O mundo inconsciente infantil, repositório mágico de fantasias, alimento da poesia, poderia ter idêntica comunicação no momento da criação poética.

Os antigos entendiam que esse impulso inconsciente na composição artística fosse obra dos deuses através de musas inspiradoras. Próximo de nós, Goethe disse que escreveu o seu Werther em estado de semi-consciência. Em depoimentos, alguns artistas e poetas, no ato criador, se dizem tomados por uma força inspiradora pela qual se deixam levar na composição artística. Isso, por se tratar de fenômenos claramente subjetivos e sem nenhuma conotação lógica de conhecimento, devemos admitir que a razão não sabe explicar. Freud talvez."

*Abílio de Barros é escritor, poeta, advogado e pecuarista.