Na quina da cama, meu avĂ´ escorou as pernas. Estava com passos vacilantes e ligeiramente curvado. Teve de novo aquele pesadelo. Sua mente está repleta de lembranças e povoada por fantasmas. Ele tentava decifrar um sonho: uma mulher de voz áspera e braços abertos que aparecia no meio do quarto e soletrava o nome de um lugarejo: “Ro-che-di-nho”.
Meu avô ficou perturbado com aquelas visões na madrugada. Não conseguia tocar a vida pra frente. Ficava à espera de respostas. Tinha uma espécie de conexão com o lugar. Por isso, foi até lá.
Partiu cedo para estrada. No caminho, viu raios de sol nas plantas, borboletas e o sentiu o cheiro de orvalho da madrugada. Além do gado e da braquiária, havia gente de bicicleta por lá. Ciclistas uniformizados pedalando num ritmo intenso.
Antes de chegar em Rochedinho, parou no sĂtio de um compadre. Era um lugar agradável e hospitaleiro. Ali, um pequeno agrupamento de mangueiras sustentava a sombra em volta de uma casa feita de barro. Tinha um palpite de que encontraria as primeiras respostas por lá.
Logo a comadre Zilá apareceu na janela e o chamou para entrar. Em seguida, um trator em marcha lenta se aproximou da casa. Era o compadre Nino, com a voz embargada, pronunciando o apelido da famĂlia: “Pica-Pau!”.
Meu avĂ´ nem parecia escutar o chamado do amigo. Estava em transe, com o pensamento longe, revivendo passagens e sonhando com a possibilidade de voltar a viver naquele lugarejo tĂŁo peculiar.
Quando recebeu os abraços e o carinho do casal de compadres, sentiu um aperto no peito e deu a chorar. O homem duro e genioso de décadas passadas, amolecia o coração e era só ternura.
A comadre, emotiva com a presença do velho amigo, serviu lhe um copo de água com açúcar e pĂ´s a ferver um lĂquido escuro na chaleira, para acrescentar ao chá de cidreira. Era muita emoção.
Passado a comoção da receptividade, meu avô de mansinho começou a desabafar com os amigos. Disse que andava cabreiro com uns pesadelos e que não tinha a menor ideia do motivo das mensagens.
Nino ouviu atento o caso, mas sem tirar os olhos da esposa. Ficou de butuca na mulher, com medo dela se envolver no assunto. Dona Zilá era benzedeira, tinha fama na região de antever acontecimentos e quebrar encantos.
Com pena do amigo, a comadre resolveu dar algumas pistas. Antes, advertiu que estava enferrujada para esse tipo de trabalho. Nino com um olhar sério e furioso reprovava a atitude da esposa.
No meio da conversa, meu avô mostrava suas particularidades. De vez em quando, levantava uma das pernas, sacolejava a calça e soltava uns sons estranhos que se assemelhavam ao ronco de uma lambreta. O compadre, sem jeito, inalava a contragosto o odor e resmungava em voz baixa.
Foi então que, subitamente, a comadre arrebitou a boca de poucos dentes e começou a falar. Disse a meu avô que teve um pressentimento a respeito das visões. O motivo dos pesadelos seria um alerta.
Arrepiada e inquieta a comadre parecia em transe. De repente, começou a sacudir os ombros, erguendo os braços para o alto. Parecia uma conexão com o além. Meu avô, sem entender nada, tentava decifrar a mensagem.
Com a voz esquisita, ela disse ao meu avĂ´ que dois de seus filhos corriam perigo por causa das extrepulias fora do casamento. Com o rosto vazio e destituĂdo de qualquer expressĂŁo, meu avĂ´ retornou Ă cidade com a missĂŁo de convencĂŞ-los a mudar de vida.
De volta à cidade, fez questão de conversar reservadamente com os dois. O mais velho, não deu bola para as advertências do pai. Mesmo porque, construiu uma reputação inabalável de pegador profissional.
O homem era sĂł libido. Por onde trabalhou, fazia exibições musicais cantando boleros e tocando sanfona nas confraternizações. Mas para tranquilizar o velho, garantiu que desde a cirurgia na prĂłstata, nĂŁo sentia mais “aquele” mĂşsculo pulsando (ou seria nervo?) como antes.
Já o outro filho, levou a advertĂŞncia na brincadeira e confirmou as suspeitas de que perambulava pelos bairros, frequentando casas de famĂlias, com o objetivo de despir moças, tratando-as como bebĂŞs.
Foi aĂ que meu avĂ´ identificou nos filhos alguns traços peculiares. Os Pica-paus tinham predileção por arrumar casos com mulheres simplĂłrias que moravam em bairros distantes. Era uma forma de nĂŁo levantar suspeita e viver o furor do amor clandestino. Outra caracterĂstica marcante dos filhos era oferecer presentes caros e cursos profissionalizantes Ă s suas parceiras sexuais.
A vida seguiu seu curso e meu avô se acostumou às práticas amorosas dos filhos. Dizia aos amigos que dormia e acordava com as boas lembranças de Rochedinho. Ainda ouvia o cachorro latindo, o galo cantando e a esposa reclamando no fim de cada madrugada. Até que, mergulhou na despedida da vida e sobreviveu na lembrança e na memória do entes queridos.
(A história acima é uma ficção, tendo como ponto de partida um fato real.)
* Jornalista e escritor