Pages

Wilson Barbosa Martins: 100 anos


No próximo dia 21, o ex-governador Wilson Barbosa Martins completa 100 anos de vida. Há muito tempo não o vejo. Notícias que me passam aqui e acolá dizem que ele está em paz, num estado semelhante ao do nirvana, num mundo exclusivo, sem dor, prazer, tristeza ou alegria, sem consciência plena do mundo real. 

Independentemente do que seja, acho que WBM está integrado com a natureza, vivendo o máximo da benevolência que a vida permite, ausente da pequenez cotidiana, integrado ao cosmo Spinoziano, como se diria. 

O que resta àqueles que o conheceram e vivenciaram bons momentos com esse notável político de nosso Estado é a memória, essa amiga mendaz dos que conseguem selecionar fatos para amoldá-los às suas interpretações. É o que farei aqui.

Conheci Wilson por acaso no começo dos anos 80. Fui contratado como repórter de uma revista mensal assim que cheguei a Campo Grande.*

A pauta era simples: sair às ruas da cidade gravando depoimentos de populares para conhecer as expectativas em torno da criação de Mato Grosso do Sul. Havia uma onda otimista no ar em torno da ideia de “Estado Modelo” e a proposta era captar esse sentimento. 

Eu e a fotógrafa da Revista (Lígia) saímos pelo centro ouvindo as pessoas. Em dado momento, senti a necessidade de acrescentar ao painel que estávamos formando uma opinião jurídica sobre o acontecimento e, andando pela Rua 15 de novembro, vi uma placa de metal de escritório de advogado e entrei. 

Expliquei o assunto à secretária e pedi para entrevistar um dos advogados da banca. Passado um breve tempo, surgiu na porta um homem magro, esguio, tipo aristocrata machadiano, pedindo que entrasse e me sentasse. 

A sala era soturna, móveis de madeira robusta, decoração clássica, tudo cheirando à tradição e longevidade.

Fiz as perguntas de praxe e recebi como resposta raciocínios extremamente cortantes e inusitados para o período em que vivíamos – ditadura, censura, tortura, medo. Fiquei perplexo. Tive a clareza de que tinha um material valioso nas mãos. 

Quando comentei o assunto na redação, uma das sócias da Revista indagou assustada: você tem certeza de que entrevistou o Wilson Barbosa Martins!? Não havia entendido o assombro. Ela me explicou: esse homem foi proibido de falar pelo governo, teve o mandato cassado e não se manifestava havia mais de 10 anos. Era um mito. 

Fiquei em estado de excitação porque eu tinha sido o primeiro jornalista a estar rompendo com esse silêncio imposto a um homem que me pareceu extremamente lúcido, coerente e correto. 
Para meu azar, o gravador era velho e exatamente no momento da entrevista a fita cassete foi “mordida” e danificada. 

Mas a conversa tinha me impressionado, tanto que voltei a ligar para o Dr. Wilson e pedir uma nova gravação, explicando que o material havia se perdido. 

Marcamos para o dia seguinte. Desconfiei que ele não fosse repetir suas análises, porque agora ele podia refletir sobre a pauta e medir as palavras, avaliando as conseqüências da publicação, mesmo tendo sido recentemente anistiado pelo regime. 

Na hora marcada, liguei o gravador e dei início ao depoimento. Para a minha surpresa ele foi mais contundente e assertivo do que antes. 

Depois da publicação da Grifo, cuja entrevista teve um bom destaque e relativa repercussão (afinal um personagem proscrito da política havia falado), fui até a sua casa para lhe entregar um exemplar e bater um papo desinteressado. Daí surgiu nossa amizade.

Tempos depois, viajamos juntos pelo interior em campanha eleitoral, passamos frio e fome em compromissos partidários torturantes, em bolsões atrasados do Estado, conhecendo gente nova, esperançosa, até mesmo pueril, e vimos assim renascer um Brasil diferente se descortinando com as ilusões da democracia pregada pelo Dr. Ulisses Guimarães. 

Tempos depois Wilson seria eleito o primeiro governador em eleição direta de MS e, durante dois anos, fui trabalhar em seu gabinete. Naquele tempo não havia essa cobrança atual com o conceito de “transparência”, mas, mesmo assim, o governador exigia ser acompanhado por um jornalista para ouvir e registrar todas as suas audiências. Muita gente detestava essa postura. 

Eu praticamente passava a maior parte do dia sentado numa poltrona ao lado de sua mesa ouvindo e anotando conversas com políticos, empresários, lideranças sindicais etc. , registrando tudo e, no fim do dia, selecionando o que era pessoal e o que era institucional para, depois, enviar o relato como  press release ( que chamávamos de “geralzona”) para as redações. 

Somente duas vezes Wilson me pediu para sair da sala. Uma, quando ele recebeu por duas horas o deputado Londres Machado, e, outro, quando recebeu um Cônsul Americano (cujo nome no momento não me lembro).  

Saí da governadoria por motivos pessoais, tensionado, cansado, envolvido nas redes de intriga do poder, quase com um colapso nervoso, e prometi nunca mais voltar àquele lugar. Wilson não gostou de minha decisão. O Partidão – ao qual era filiado – também não. Mas essa é a vida. 

Mesmo assim, trabalhei muito próximo a ele em seus dois governos, sempre o visitando, trocando idéias, entrevistando, dando palpites ou o admoestando com artigos críticos, apontando os erros que cometia. Nunca – nunca! – sofri reprimendas, hostilidades, processos ou ameaças veladas por isso. 

Nos momentos mais complicados, ficávamos distantes, mas sempre que nos encontrávamos fazíamos galhofa, mesmo quando uma vez entrevistei um professor da Universidade para o Correio do Estado que chamou seu governo de “caquético”. Wilson achou que eu devia ter retirado a palavra na hora da edição do material. Ficou aborrecidíssimo.

Dessa vez ele foi pessoalmente à redação do jornal reclamar. Pedi a ele que escrevesse um artigo-resposta e divergisse. Preferiu o silêncio. 

Mesmo assim, a amizade não se abalou. Eu havia voltado ao jornalismo, depois de quase 6 anos de atividades meramente administrativas. E estava mais afiado do que nunca. Havia superado inúmeros problemas pessoais e estava pronto para assumir uma espécie de protagonismo no debate público sul-mato-grossense. Deu no que deu...

Tempos antes, deixando o governo, a política, os movimentos partidários, Wilson passou a viver novamente no ostracismo. Ele guardou-se em casa e lá ficou. Foi nessa época – numa fase em que fiquei desempregado e morava numa chácara próxima ao aeroporto Santa Maria, que decidi tirar um período sabático de 6 meses para escrever alguns livros. 

Eu o visitava esporadicamente e ele me introduziu nas obras de Joaquim Nabuco. Esse era nosso assunto. O Período Imperial de Pedro II, ao qual Wilson adorava pelas razões óbvias, mesmo não sendo monarquista, embora sonhasse com o parlamentarismo de cunho liberal, nos levava a discussões intermináveis.

Tive então a ideia de fazer uma série de entrevistas com ele para posterior publicação em livro. Memórias e avaliações. Esses eram os temas. Conversamos e ele topou. Mantivemos durante três meses uma rotina de dois encontros semanais. Gravei cerca de 40 horas de depoimento, que terminou gerando 10 entrevistas editadas. Nunca as publiquei pelas razões que prefiro não revelar. 

O material até hoje é inédito. Somente o ex-assessor de Wilson no senado e historiador nas horas vagas, Mário Sérgio Lorenzetto, teve acesso a uma pequena parte dessas entrevistas.
 Pretendo dentro em breve levá-las ao conhecimento público

Creio que será em data certa e adequada. Creio que, como cidadão e jornalista, devo conceder a historiadores, estudiosos e políticos esse pedaço de nossa história. Mesmo porque, completar 100 anos para alguém que viveu intensamente seu tempo não é um evento trivial. 

*Revista Grifo, comandada por um grupo de jornalistas: Marília Leite, Mário Ramires, Neusa Chacha, Miriam Duailibi, Mário Licerre, Walter e Lígia Pato.